.Apresentação

“Metade da humanidade não come; e a outra não dorme, com medo da que não come”, Josué de Castro.

“Lapsos, Aterros e Memórias” é uma exposição fotográfica virtual que se debruça em uma parte do território da Zona Sul do Recife. A região abriga um dos maiores manguezais urbanos do país – Unidade de Conservação da Natureza (UCN) Parque dos Manguezais (320 ha) – e a obra viária mais cara da cidade do Recife dos últimos 30 anos – a Via Mangue (431 milhões de reais). Ao fazer esta imersão imagética e sonora pelo ponto de vista do caráter urbanístico e ambiental dos reordenamentos urbanos na região – já que estamos falando de uma área de mata dentro da cidade -, lancei mão de minhas memórias e vivências e as ressignifiquei em territórios circunvizinhos. Espaços de convivência dentro da via expressa antes de ser inaugurada e imagens captadas em um espaço público, porém restrito, que ficou “preservado” da especulação imobiliária integram esta relação entre memória, afeto e transformação dentro da exposição. Imagens e sons convidam os sentidos a vivenciar a identidade de manguezal que carrega a urbe.

Quando comecei a retratar esta região há 8 anos, o Recife presenciava a movimentação do Ocupe Estelita contra o projeto Novo Recife. A capital pernambucana frequentava o noticiário como tendo um dos piores trânsitos do mundo. O consórcio de empreiteiras pretendia erguer 13 torres de 40 andares com 5 mil garagens para carros em um terreno da Rede Ferroviária Federal no Cais José Estelita – terreno da União e cartão-postal com vistas para a região histórica da cidade – , adquirido em 2008 em um leilão suspeito de ilegalidades. O local é a zona de confluência de ligação entre o centro expandido e a Zona Sul do Recife. O projeto teria como “contrapartida” um parque cultural com acesso público ao lado, o que torna evidente a desproporcionalidade entre o interesse privado frente ao acesso coletivo no uso da cidade.

Alças viárias elevadas de acesso sobre praças e uma série de viadutos sobre o principal corredor viário que margeia o centro expandido – Avenida Agamenon Magalhães – faziam parte do projeto do governo do Estado que, se concretizado, teriam feito o Recife conviver com uma rodovia atravessando a cidade, destruindo o passeio público e inviabilizando a circulação viária nas ruas vicinais. Após manifestações da sociedade civil, o governo recuou.

A Via Mangue é parte desta ideia. Sem semáforos, sem faixas de pedestre e exclusiva para veículos automotores individuais, ela fazia parte deste experimento de negação do espaço público. Antes de ser uma solução para o trânsito ou para convivência sadia junto a pedestres, veio como estimuladora do uso do automóvel – uma das muitas contradições da obra se formos analisar parte do marketing ambiental que a legitimava – , proporcionando espaços desertos.

Fundamentada em discursos do ambientalismo reformista – a criação do Parque dos Manguezais Josué de Castro seria uma espécie de ação mitigadora – ao ambientalismo profundo – seu caráter isolacionista estaria ali para preservar a floresta – , a obra passou em cima de uma parte do manguezal por meio de uma via elevada em vez de optar por um processo degradante de aterramento, graças a alertas de ONGs e ambientalistas. Seu projeto nasceu na década de 90, tinha o nome de Linha Verde e previa o pagamento de pedágio. Embora dotada de ciclovias, sua proposta dissimulada era de impedir o acesso de pedestres e moradores de comunidades próximas à área preservada com o uso de grades. Comunidades como a do Bode e Ilha do Destino, por exemplo, que têm uma identidade com este tipo de ecossistema, marcante em toda a Região Metropolitana do Recife.

v Áudiodescrição:

Imagens: Hamilton Tenório

Luta Jurídica – Para entender um pouco o que está em jogo, é preciso se debruçar sobre o recente histórico de disputa na região. O Parque dos Manguezais como centro de visitação jamais foi implementado. Isso se deveu à negativa da Marinha do Brasil ao projeto, ganhando na justiça a derrubada do decreto da Prefeitura do Recife que criava o parque de visitação pública, inviabilizando sua concretização. Toda a área de floresta é propriedade da União, mas a Marinha  detém a prerrogativa de decidir sobre a área graças a uma lei de 1971, da época da ditadura militar. A área de manguezal abrigava a Rádio Pina desde a Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil se juntou aos aliados no conflito. Foi implantada pelas forças dos EUA que cederam o maquinário para a Marinha do Brasil ao fim da guerra. A rádio Pina foi desativada em 1991.

Este decreto de 2010, que foi considerado ilegal pela justiça, determinava que se implementasse um parque de visitação e pesquisa ecológica nas terras da União junto com a Via Mangue, uma discussão que vinha se amadurecendo desde a década de 1990. Pega de surpresa por um leilão organizado pela Marinha em Natal, o secretário de meio ambiente da Prefeitura do Recife à época levou o decreto – que já estava sendo elaborado – , para ser assinado pelo vice-prefeito, impedindo assim a realização de uma permuta com construtoras. A Marinha pretendia ceder o terreno da União em troca de construções de unidades habitacionais para oficiais e suboficiais em Natal, Maceió e Recife. O leilão foi anulado, a Marinha entrou na justiça e o secretário acabou “entregando” o cargo para o prefeito.

Ao deparar-se com fragilidades para o negócio – a região tem proteções ambientais nas três esferas do executivo, além dos manguezais serem áreas de preservação permanente – tanto a Marinha como a Prefeitura vêm tentando desde então encontrar brechas legais para tirar proveito da área a fim de construir unidades habitacionais, seja no seu interior ou em outras partes da cidade. Uma das ideias é aumentar o potencial construtivo da área para transferir direito de construir às construtoras em troca de unidades habitacionais para os oficiais e suboficiais em outro ponto da cidade. Tentaram fazer isso na Vila Naval – zona norte do Recife – , área com restrições do ponto de vista histórico e paisagístico, mas a proposta foi vencida graças a mobilização da comunidade ZEIS de Santo Amaro e do grupo Direitos Urbanos. Levantam, ainda, o argumento que o Recife não tem mais áreas rurais e, por isso, poderia-se construir dento de áreas de preservação. O argumento não tem base legal no âmbito federal.

O território – Foi em 2013 que comecei a me interessar pelo tema. Não apenas pelo viés urbanístico e ambiental, mas também pela simbologia com que o manguezal habitava minhas memórias, embora eu só tenha percebido isso dois anos depois, ao mergulhar dentro do Parque e perceber como aquele território remetia a tantas sensações relativas aos meus tempos de infância.

Morador de Boa Viagem desde 1976, assisti à mudança drástica que o bairro passou. Tinha 4 anos de idade quando cheguei para morar naquela rua repleta de terrenos baldios, árvores frutíferas e lotes sobre restinga aterrada. Dezenas de campos de futebol a perder de vista em meio ao alagado. Times uniformizados que vinham de diversas comunidades da cidade para participar de campeonatos. Conjunto de mocambos na beira do mangue ou esparsos em alguns destes lotes, com levas de populações pretas migrantes de outras partes da cidade ou do interior do Estado, oriundas de períodos de seca e fome. Mocambos, estes, tão imortalizados em poemas de João Cabral de Melo Neto ou pelos tratados sociológicos de Josué de Castro.

Embora boa parte da região fosse aterrada, restingas e mangues submergiam, onde pegávamos peixes-betas com peneiras nos alagadiços para fazer rinhas dentro de garrafas de vinho ou whisky. O verde das garrafas acentuava as cores dos peixes e eu ficava horas a observar seus movimentos. Ou então íamos à beira do canal Setúbal, braço do Rio Jordão, caçar caranguejos com alçapões de lata de óleo Salada com iscas de abacaxi. É evidente que naquela tenra idade eu não tinha noção da crueldade que infligia aos peixes e, muito menos, do drama da fome que a vasta população do Recife era submetida. E que os caranguejos eram os “irmãos de leite” das meninas e dos meninos pobres, habitantes legítimos do manguezal, como mimetiza Josué de Castro no seu romance “Homens e Caranguejos”, muitos tendo que trabalhar já muito cedo. O forasteiro era eu.

Boa Viagem na década de 1970. No primeiro plano, a Avenida Boa Viagem e o edifício Acaica. No plano de fundo, a comunidade Ilha do Destino e à direita, a Rádio Pina, onde se encontra hoje em dia a UCN Parque dos Manguezais. Foto: Revista Manchete.
Boa Viagem na década de 1970. No primeiro plano, a Avenida Boa Viagem e o edifício Acaica. No plano de fundo, a comunidade Ilha do Destino e à direita, a Rádio Pina, onde se encontra hoje em dia a UCN Parque dos Manguezais. Foto: Revista Manchete.

v Áudiodescrição:

Todos aqueles terrenos, como o do “campinho do Zé Peruca”, eram um espaço de convivência. Peruca, um senhor preto, magro e de braços fortes, vivia em um mocambo a beira do campinho e dividia a morada com sua oficina de bicicleta. Sua clientela era extensa: moradores da Ilha do Destino, porteiros dos edifícios e os filhos da classe média do bairro. Era ali que no fim de semana juntava uma turma grande para jogar futebol.

Com a construção do Shopping Recife no início dos anos 80, a região começa a mudar profundamente. O bairro de veraneio da elite canavieira, então recente, já se decidia pelo caráter residencial e gentrificador. Não demorou muito para o Zé Peruca sumir do local, embora o terreno tenha ficado ali ainda alguns anos. Depois, foi o campo que deu lugar a um edifício. No final da década, as casas de classe média da rua começaram, paulatinamente, a dar espaço a edifícios de médio porte.

É neste momento que começam a aparecer as grades nos edifícios. Até 1980, boa parte dos edifícios residenciais tinha seus acessos abertos para a rua. As consequências econômicas do período militar – acentuação das desigualdades, dívida externa e a inflação descontrolada – criam um período conturbado no Brasil e faz explodir a violência urbana que se tornaria endêmica nas décadas seguintes. A paranoia das classes abastadas é acentuada e aumentam os estigmas contra as populações negras, moradoras da beira do mangue. Só permaneceram ali por conta das leis de zoneamento de proteção social. De outra forma, certamente estariam vivendo na periferia da Região Metropolitana Região (RMR). Daí para frente, as escalas do modelo segregador só aumentam.

Mas as transformações não se limitavam só às populações de baixa renda. Bares e restaurantes da orla começaram a fechar para dar lugar às primeiras torres. Aberrações como a demolição da Casa-Navio ou, mais tarde, a incorporação do Castelinho  – bar símbolo da avenida Boa Viagem – a um novo edifício de quase trinta andares, com o argumento de “preservar” a arquitetura, mostravam o cinismo das construtoras ao inutilizar seu uso. Com a ausência do Estado em realizar tombamentos em prol da conservação do patrimônio histórico, tais casas eram alvos fáceis: bastavam grandes ofertas de dinheiro ou a permuta em apartamentos, já que com poucos terrenos remembrados pode-se construir muitos apartamentos de luxo. Eis a raiz do rentismo imobiliário: a especulação. O Recife, que até então tinha como característica forte a sua diversidade arquitetônica, começava a assistir à implosão de um bairro que sequer tinha atingido a maioridade. Boa Viagem passa a ser o experimento de um projeto especulativo comparável a uma monocultura.

Passeio de barco no Rio Capibaribe (Recife). Na foto, pescador joga de rede de pescar no Rio Pina. Ao fundo, Brasília Teimosa e os prédios da zona sul do Recife (PE). Foto: Marcelo Soares.
Passeio de barco no Rio Capibaribe (Recife). Na foto, pescador joga de rede de pescar no Rio Pina. Ao fundo, Brasília Teimosa e os prédios da zona sul do Recife (PE). Foto: Marcelo Soares.

v Áudiodescrição:

Via mangue – Com a construção da via expressa e o acesso das construtoras a financiamento nacional e internacional, via mercado financeiro, a escala das demolições se torna assustadora: quarteirões inteiros passam a ser derrubados para dar lugar a torres de 40 andares. O território da Casa Grande se verticaliza, embora seus receios continuem sugerindo a generalização do povo preto e pobre como uma ameaça latente. Era preciso retirar parte da população que ali morava para satisfazer o tal valor de mercado, inclusive dos terrenos. Mesmo que em troca de unidades habitacionais que melhorassem a condição de habitação daquelas populações. Em outro território perto, mas longe dos abastados de Boa Viagem. É o efeito proximidade espacial com distanciamento social.

Ao apostar numa política urbana de segregação, o mercado imobiliário quer distância da palafita. Afinal, seu modelo de moradia é o claustro moderno, a negação da rua, criando vazios urbanos. E os carros, especialmente as SUVs, são vistos como proteção ao espaço público “ameaçador”. Soma-se a isso a percepção que as comunidades à margem da região não são vizinhos desejáveis. Pior: o modelo privilegia a frente das águas. Frentes, estas, ocupadas por populações ribeirinhas com identidade pesqueira forte.

Com o bairro saturado de carros e edifícios, a via expressa cria uma nova tensão junto às comunidades do Pina e à área de preservação do manguezal. Embora a obra seja louvada pelos moradores de Boa Viagem – diminuiu os engarrafamentos – ela não prioriza o transporte público e acaba sendo pouco sustentável quando estimula mais ainda o uso do automóvel. Além disso, o novo Plano Diretor aprovado no final de 2020, sem participação da sociedade civil, liberou as construtoras de levantarem vários pisos de edifícios-garagem sem que tal aumento fizesse parte do cálculo da área construída do edifício. O discurso ambiental reformista de retardar o aquecimento da terra e do avanço dos mares, geralmente propagandeado por empresas que se dizem sustentáveis, se resume a telhados verdes e aproveitamento das águas pluviais. E só.

Ao conceber uma obra que estimula a especulação imobiliária em seu entorno, o poder público deixa de enxergar a cidade para seus cidadãos e procura negar os espaços públicos mais uma vez, olhando a urbe como se fosse uma empresa e o parque como a extensão do negócio imobiliário. O fato de haver um Shopping Center em cada ponta da Via Mangue só reforça o potencial especulativo da área. Há uma emergência clara de reforço à proteção contra a especulação imobiliária junto à UCN Parque dos Manguezais e a estas comunidades (Bode, Ilha de Deus, Jardim Beira-Rio, Encanta Moça) que têm como identidade a pesca junto à grande floresta de manguezal. O novo Plano Diretor flexibiliza, ainda, empreendimentos imobiliários dentro de terrenos de zonas especiais de interesse social limítrofes a grandes corredores viários. Já com relação à floresta de manguezal, permite a elaboração de leis específicas para as zonas de proteção ambiental. Desta forma, parte da UCN Parque dos Manguezais estaria aberta para a “criatividade” do setor imobiliário em criar parques ligados aos empreendimentos, quebrando o caráter público e educativo do que se idealizou num passado recente.

A exposição

A narrativa da exposição se baseia na observação imagética da convivência das pessoas com a Via Mangue, do seu caráter isolacionista e excludente, e da experiência sensorial por meio de sons e imagens com vias de mostrar a riqueza do ecossistema que se formou ali. Ela está dividida em 5 “salas”: Lapsos, Muros, Aterros, Memórias e Além-muros. Nelas, você vai encontrar fotos e pequenos vídeos quase sempre com uma paisagem sonora. Os sons dos vídeos não foram gravados diretamente, mas desenhados com alguns pontos de sincronia, embora tenham sido captados no território que abrange a exposição. Algumas fotos preservam o silêncio intrínseco necessário. Outras sugestionam a possibilidade deste encontro sensorial entre imagem e som, sempre deixando ao espectador o direito de escolher se ouve um som e cria a sua própria imagem ou se empresta deste fotógrafo a imagem sugestionada: o encontro sensorial é livre.

Lapsos, é o lugar das falhas, dos erros, das intercorrências dos tempos. Da hegemonia de uma solução rodoviária sobre os outros modais de locomoção. Do isolamento de comunidades do resto da cidade. Mostra para quem a obra foi pensada, enaltecendo o carro como símbolo de status social em detrimento de qualquer sustentabilidade urbanística ou ambiental. O cavalo baqueado é a clara manifestação que a ideia da obra não incluía as particularidades de uma vasta população que mora por ali. Uma violência que tem uma relação entrópica com o ser pedestre. Uma dicotomia do século XX entre o cavalo e o carro que ressuscita o ódio de classe, até no seio político, travestido de compaixão pelos animais, com campanhas que demonizam os seus donos, moradores da beira do mangue. É o lugar também da ausência de cuidado que a população em geral tem pelos seus rios – em especial o Rio Jordão, que acabou se tornando mais um canal de dejetos na cidade.

Muros aborda o caráter do reordenamento urbano. Da retirada de espaços de lazer de comunidades preservadas a duras penas. No isolamento da área do manguezal para servir de interesse especulativo imobiliário travestido de argumento ambiental. A floresta de manguezal deve ser preservada de uma ocupação massiva de sua área para fins de moradia, mas soa estranho remover famílias para conjuntos habitacionais e, ao mesmo tempo, abrir possibilidades para que empreendimentos imobiliários ocupem uma área pública e protegida ambientalmente. Grades quebradas são sinais de resistência a este modelo. Os laços com o mangue não conseguem ser rompidos. De como a arquitetura do isolamento favorece a insegurança. Estamos na Era do Antropoceno e não há como pensar na natureza sem colocar a perspectiva da cultura no jogo. Não é mais possível pensar a natureza como fonte de recursos ilimitados ou como algo totalmente intocável. E este jogo tem que levar em conta a fome, o deficit de moradia popular, o lazer e a interação sustentável com a natureza.

Em Aterros as sonoridades do território se mostram presentes. Os referenciais são revistos. A visão de dentro do território evidencia os impactos. É ali onde os dejetos e as águas pluviais escorrem até chegar à Bacia do Pina. É ali onde o lixo é recolhido pelos braços das árvores do mangue. É o aterro também que recebe o refluxo das ressacas de uma cidade que se construiu sobre alagadiços, restingas e manguezais. Vivemos em uma urbe que tem seu cotidiano marcado por tais movimentos. Quem conhece o Recife sabe que as chuvas e as marés altas sempre avisam sobre este caráter da cidade. E também como ilhotas de terra vão aparecendo num movimento de vai e vem das marés sobre os rios, formando novos pontos “seguros” no mangue, como narrou Josué de Castro em suas observações.

Memórias faz submergir aquilo que foi aterrado não só em termos físicos, mas também de um modo de viver que já não mais existe no bairro. Das brincadeiras de criança sobre os manguezais, das garrafas com peixes-betas com suas cores verde-anil e vermelho, das brincadeiras com bonecos na beira do mangue que, por um descuido, acabaram seguindo o leito do rio. Dos esconde-escondes de quarteirões. Das edificações em estilo neocolonial que foram derrubadas sem nenhum interesse em se preservar a própria história do bairro ou das instituições que ali funcionaram contra o predomínio de uma ordem fascista mundial. Da falta de espaços de lazer em que a própria via expressa se transforma em lugar de diversão. Até ser inaugurada, enclausurando pessoas de volta aos seus habitats estéreis dos condomínios fechados ou dos apertos dos barracos, sem rua definida, sem calçada, sem saneamento, sem natureza. O planejamento é derrubar tudo, negar os espaços públicos e lucrar o máximo possível. Não há mais memória viva do lugar onde cresci e vivi a maior parte da minha vida. Resta ir ao mangue para encontrar resquícios deste tempo e ressignificá-los em termos de foto para lembrar de como não é mais. Ainda há vidas deste tipo na cidade, basta procurar. Não em Boa Viagem.

Além-muros é o conjunto de imagens e sons que o citadino dentro do carro não consegue imaginar que existam. Que os muros da cidade impedem da população ver, conhecer, entender, estudar e se relacionar. Porque a maioria da fauna e da flora que ali habita não têm interesse de vir deste lado de cá. Marrecas-toicinhos, garças grandes brancas, garças azuis, tamatiões, mangues brancos, caranguejos, movimentos de águas sobre a floresta de manguezal carregando suas sementes maré afora. É desses movimentos de ir e vir que precisamos estar atentos. É por meio desses movimentos de marés que o sentido da vida insurge com esplendor. Do tempo de voltar às ruas depois da situação tão dura que todos nós estamos vivendo. Do tempo do medo terminar.